14 novembro 2014

Guimarães Jazz 2014

Acabei de chegar do Guimarães Jazz.
Vou ter de me deitar a escrever, mas entretanto aqui ficam umas notas:
O melhor da primeira semana foram o David Murray e o Theo Bleckmann. E as duas jam sessions a que assisti. Já lá vamos.

O David Murray é um dos grandes saxofonistas da actualidade. Sobre isso não há muito a dizer. O que é curioso é que ele cumpra hoje o papel que Archie Shepp cumpriu há duas décadas: depois de um percurso na vanguarda, ambos pareceram retroceder, integrando as fileiras do mainstream. E como poucos (e por isso mesmo) souberam integrar o adquirido - o seu passado - com a tradição, numa espécie de síntese que não tem complexos em percorrer toda a história (toda a História do Jazz), que se observa no objecto e numa linguagem ousada, mas sábia. 
Concerto sólido, gozado.

Sobre o James Carter, aconteceu o que temíamos. 
James Carter é - apenas - o mais impressionante saxofonista da história do Jazz, um verdadeiro monstro no instrumento, sem par. Mas porque pode - e ele pode literalmente tudo - ele envereda com frequência por caminhos que têm mais que ver com o exibicionismo técnico que a produção da música.
É verdade que o virtuosismo faz parte do Jazz: os músicos de Jazz são por definição excelentes músicos, e a exibição das qualidades percorreu algumas das sessões mais famosas da história. 
E se não consigo deixar de apreciar a virtuose absoluta do homem, há algo de circense na sua exibição que menoriza os concertos.  
Mas lá que arrepia, arrepia. 

O Theo Bleckman fez um concerto muito bonito. Bom, não é Jazz. E então?
O projecto era à partida de grande risco: tocar a música de Kate Bush. Lembram-se da voz da Kate Bush? - O Gonçalo (Falcão) chamou-lhe de miado. 
Poderemos dizer que se tratou de um concerto pop tocado por músicos de Jazz. A própria atitude dos músicos (e a figura) atirava para fora do Jazz.
Logo aos primeiros acordes aquilo soou-me a um psicadelismo Pink Floyd do tempo de Syd Barrett mesclado com o dramatismo de Robert Wyatt. Nada a dizer: estava perante o melhor dos mundos (musicais). Sem quaisquer veleidades de tocar Jazz, Theo Bleckman e a banda, recriaram a música de Bush, e eu diria que ficou bastante melhor. 
Enfim, a partir de certa altura a voz de Bleckman, e a interpretação, diminuíram no «experimentalismo» (ponho sempre aspas, porque a palavra experimentalismo me sugere a experiência como um fim, o que eu acho uma parvoíce) para evocar a música de Peter Hammill. que se sentia até no timbre e no dramatismo «épico» da voz.
Belíssimo de uma ponta a outra.
    
«Erro de casting» foi o mexicano Adrián Oropeza, que não tinha claramente lugar num festival com o prestígio do Guimarães Jazz. Posso compreender as razões, mas ainda assim, eu poderia citar de cabeça vinte ou trinta músicos nacionais com melhores qualificações que o baterista. Sem sequer a personalidade «étnica» que poderíamos imaginar como argumento, ele faria quando muito uma hora bem passada à frente de um copo de whisky ao balcão de um bar numa noite de chuva.
A não repetir.

Grande expectativa rodeava o concerto da «Big Band, Ensemble de Cordas e Coro da ESMAE».
Bom, o coro não veio, não sei se por bem.
A expectativa advinha em grande medida pela «aura» vanguardista que rodeava os músicos. Os dois israelitas-novaiorquinos eram-me completamente desconhecidos, mas Taylor Ho Bynum integrou os grupos de Anthony Braxton durante anos e Adam Lane tem passado por Portugal com regularidade (esta é a décima vez, ao que disse), com gravações irregulares na Clean Feed.
O concerto constou de vários temas, dirigidos pelos quatro, em separado, com um dos temas dirigido «aleatoriamente» por três em simultâneo.
O resultado foi diverso, estando os melhores momentos a cargo de Adam Lane. Creio que algum pretensiosismo vanguardista prejudicou o concerto, que teve ainda assim alguns bons momentos. 
O último concerto do festival esteve a cargo do «Projeto Guimarães Jazz / Porta Jazz», dirigido por Susana Santos Silva
Irregular também, a música da trompetista tem enveredado nos últimos tempos por um caminho que valoriza a dissonância e que claramente ainda não está consolidada. 
As imagens que foram projectadas ao longo do concerto eram de certa forma exemplares também de algum pretensiosismo do concerto: abstractas, desinteressantes, inúteis, apenas serviram para desviar a atenção da música.

As jams sessions são sempre obrigatórias, e quem vai ao Guimarães Jazz e não vai ao Convívio (com passagem pelo Martins para o prego e o fino da noite, mas isso já é facultativo, mesmo se aconselhável), não foi ao Guimarães Jazz. Digo eu, que sou um entusiasta.
As jam sessions são o local onde se cruzam os alunos com os «professores» dos workshops com os músicos que diariamente actuam no Vila Flor. Desde há uns anos divididos entre o Convívio e o Café Concerto, a minha preferência vai claramente para o Convívio, pela patine e pela onda.    
Numa das noites, mais calma, os alunos foram rodando, entre saxofonistas, trombonistas, guitarristas, pianistas e até um cantor, enquanto Reut Regev (trombone), Taylor Ho Bynum (trompete), e Igal Foni (bateria) - iam alternando, e apenas o hiperactivo Adam Lane (contrabaixo) se manteve toda a noite.Curiosamente, muito curiosamente, os temas tocados eram ... standards. 
(Oh, como eu gostava de ver os vanguardistas da nossa praça a tocar Charlie Parker ou Sonny Rollins!!! Mas isso é outra conversa.)
Na outra noite, depois de uma hora muito semelhante, apareceu ... James Carter, acompanhado do organista e do baterista.
Momento único, diria, Bynum, Regev e Adam Lane a tocar com James Carter!!!! Só possível mesmo em Guimarães.
Um pouco antes, o pianista (Gerard Gibbs) tinha protagonizado um momento parvo, ao chutar literalmente o jovem que estava ao piano, como se dissesse: «chega-te para lá, eu sou preto, eu é que sei tocar Jazz».
Infeliz.
Já James Carter soube tocar com todos, intrometendo-se, é certo, nos solos dos outros (mas faz parte das (des)regras das jams, não é?), mas aceitando ainda assim tocar no seu tempo, e tocando ao despique com um dos jovens (Christo?, aluno da ESMAE), à boa maneira dos saxophone battles. Jovem que se portou muito bem, diria, defendendo-se como pôde, com discernimento e engenho.
O baterista ainda substituiria Foni e todos rodaram, enquanto Adam Lane tocava, tocava, tocava, furiosamente ao longo das três horas a que assisti.
E enfim, a organização do Vila Flor lá arrancou Carter do Convívio para o avião, e a noite continuou. 
Memorável.
   

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