17 novembro 2014

Angra Jazz 2014


A camisola do Angra Jazz 2014 continha uma frase célebre do pianista Bill Evans, provavelmente uma das mais conseguidas definições de Jazz de sempre: Jazz is not a what; it’s a how. E diríamos que a subtileza quase poderia servir de bitola para definir a maior ou menor proximidade dos concertos que passaram em Angra ao Jazz. Como se toca diz tudo, ou quase tudo, do engenho e da criatividade dos músicos, da sua capacidade de expressão jazzística.  
Ainda antes do início do festival, e como evento paralelo, foi inaugurada no foyer do Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo uma exposição fotográfica de Margarida Quinteiro, «Duos», composta de fotografias do Angra Jazz 2013 e de outras, que a autora emparelhou de forma muito pessoal. Ainda que – do meu ponto de vista - algo forçados, os agrupamentos, a qualidade das fotos e o (certain) regard de Margarida Quinteiro fê-las valer a pena.

Orquestra Angra Jazz




Denominei um dia à Orquestra Angra Jazz de «orquestra improvável». A insularidade e a irregularidade competiam para a sua improbabilidade, mas a verdade é que ela aí está como uma pérola no oceano. Creio que todos serão unânimes que a sua apresentação este ano ultrapassou todas as melhores expectativas. À desorientação de há três anos (que me levou na altura a criticar fortemente a direcção), sucedeu-se um esforço de refrescamento e principalmente muito trabalho, e os resultados foram notórios. Alguns erros do passado vêm sendo corrigidos, muito especial na «formação» de improvisadores. Quase todos os membros da orquestra foram levados a improvisar, destacando-se Rui Melo no saxofone e Paulo Borges, mas também Antonella Barletta no piano. 
Do lado das debilidades estiveram algum desequilíbrio na orquestra, com alguns membros muito jovens a procurar compensar a rigidez com entusiasmo, e a ausência de trombones (apenas um), (mal) substituídos por duas trompas, instrumentos bastante menos dinâmicos. Igualmente irregular, mas ainda assim a crescer, com bons momentos, esteve a secção rítmica.
Convém reconhecer que o êxito da sua apresentação deste ano se deverá em grande medida à escolha do repertório, onde o swing esteve em evidência. A orquestra tocou Count Basie (mais Basie, pf), DukeEllington, Benny Goodman, Chick Webb, entre outros; um repertório da responsabilidade de Claus Nymark a quem esteve este ano acometida a direcção em exclusivo. O swing contagiou a plateia com facilidade, no que terá sido porventura a melhor prestação da orquestra de sempre.
Um projecto que vale a pena acarinhar!

Joey DeFrancesco




A noite do primeiro dia do festival completou-se com outra surpresa. Já conhecíamos Joey DeFrancesco dos discos, mas a verdade é que as gravações não lhe fazem justiça: ele literalmente incendiou a plateia com o swing arrebatador do Hammond XB3. Instrumento de culto, o B3 ganha nas mãos do virtuoso DeFrancesco não apenas velocidade e energia, mas também blues e emoção. Com uma secção rítmica minimalista, mas eficaz – um guitarrista alternando entre Grant Green e John McLaughlin e um baterista (conhecido por habitar outras paragens mais abstractas) versátil e impetuoso-, o voluptuoso organista não deixou os créditos em mãos alheias. O climax aconteceu já no final quando, ao trompete, evocou o Miles Davis eléctrico e logo de seguida Chet Baker num tocante “TheTouch of Your Lips” cantado.    

Barry Harris




Para abrir a segunda noite, o Angra Jazz – e em jeito de celebração do centésimo concerto do Angra Jazz – reservou lugar para um dos grandes pianistas da história do Jazz, Barry Harris; um veterano que curiosamente nunca tinha vindo a Portugal. Como revelou, Barry Harris esteve programado para vir a Portugal há 21 anos, tendo sido contrariado por um avc.
Do alto dos seus 85 anos de idade, Barry Harris trouxe uma história de vida de quem tocou com todos os grandes nomes do Jazz, entre Cannonball Adderley, Miles Davis, Dexter Gordon, Charlie Parker ou LesterYoung, com um estilo pessoal que tem raízes óbvias no bop, mas a que acrescenta lirismo e serenidade.
A actuação de BarryHarris teve momentos pitorescos, de rabugice pelo som do contrabaixo, e de humor e pura empatia com o público, com a autoridade que a idade e a veterania lhe autorizam.

Gary Smulyan 

Depois do excelente concerto de Barry Harris, a tarefa de Gary Smulyan não era fácil. Quarteto de virtuosos, praticou em palco um hard-bop duro, amaciado apenas pela guitarra do excelente Peter Bernstein. O hammond B3 não esteve, às mãos de LeDonne, à altura do virtuosismo de DeFrancesco da noite anterior, mas foi eficaz a complementar as linhas do saxofone barítono de Smulyan ou a emular o baixo. Algo deslocado nos pareceu Joe Farnsworth, sempre muito rígido.        
O saxofone barítono é um instrumento pouco comum na liderança, embora existam alguns notáveis exemplos como Gerry Mulligan ou Pepper Adams. Smulyan é um discípulo confesso de Adams, um instrumentista com um som muito duro. Mas mais dúctil que duro, Smulyan procurou aproximar-se do público, logo no arranque do concerto com “Sunny”, célebre composição popularizada por Boney M. ou em “A Little Help From My Friends”.
A piscadela de olho aos jazzómanos mais empedernidos foi feita em “HeavenlyHours”, cruzando dois clássicos, “Seven Steps to Heaven”e “My Shining Hour”, rematando com um blues bem humorado, “Cracas e Lapas”, inspirado no fausto almoço.

Ricardo Toscano



O último dia do festival é sempre o dia da segunda representação nacional e do Jazz vocal, e assim se cumpriu. A noite começou com o grupo de Ricardo Toscano, um quarteto onde o elemento mais velho tem apenas 23 anos.
Entusiasmo, humildade e honestidade fizeram o que para muitos terá mesmo sido o melhor concerto do festival. Um pouco a contragosto do que faz a generalidade dos músicos nacionais, o repertório do quarteto foi inteiramente retirado do espólio dos nomes cimeiros do jazz: John Coltrane, Billy Eckstine, Herbie Hancock, Joe Henderson, Duke Ellington, Ornette Coleman; numa demonstração da eternidade do Jazz clássico.
O saxofone de Toscano revela uma sabedoria e um ímpeto como há muito não se via entre nós; mas em abono da verdade se diga que todo o grupo revelou uma arte e um conhecimento da tradição bem acima do comum, com uma coesão e energia invulgares, e tenho dificuldade em evidenciar um músico. O público aplaudiu com entusiasmo o grupo dos jovens leões.  
Uma grande lição de Jazz que muitos músicos deveriam atender.

René Marie



Depois do extraordinário concerto dos jovens músicos, temeu-se pelo pior para a segunda metade da noite. Mas as dúvidas foram afastadas desde o primeiro momento da actuação de René Marie.
Uma das peculiaridades da história de René Marie é a contestação da subalternidade que está associada à dupla condição de mulher e negra, e o primeiro tema da noite, um original da cantora, reflectiu esse tema. Mas outras canções procuraram aproximar o público de forma engenhosa, em interessantes covers de “C’est si bon”, “My Heart Belongs to Daddy”, ou um “Suzanne” (Leonard Cohen) em forma de “Bolero” de Ravel. René Marie canta blues, por vezes sugere ora Nina Simone ora DeeDee, usa o falsete ou o scat com grande agilidade, insufla alma em cançonetas, provoca ou põe o público a cantar.  
René Marie possui uma voz grave cheia de swing e técnica, mas principalmente ela é um genuíno animal de palco e a sua performance agarrou o público com eficácia. Trio de suporte eficaz, com destaque para um pianista engenhoso.
Um grande final para um dos melhores festivais de Jazz nacionais.


14 novembro 2014

Guimarães Jazz 2014

Acabei de chegar do Guimarães Jazz.
Vou ter de me deitar a escrever, mas entretanto aqui ficam umas notas:
O melhor da primeira semana foram o David Murray e o Theo Bleckmann. E as duas jam sessions a que assisti. Já lá vamos.

O David Murray é um dos grandes saxofonistas da actualidade. Sobre isso não há muito a dizer. O que é curioso é que ele cumpra hoje o papel que Archie Shepp cumpriu há duas décadas: depois de um percurso na vanguarda, ambos pareceram retroceder, integrando as fileiras do mainstream. E como poucos (e por isso mesmo) souberam integrar o adquirido - o seu passado - com a tradição, numa espécie de síntese que não tem complexos em percorrer toda a história (toda a História do Jazz), que se observa no objecto e numa linguagem ousada, mas sábia. 
Concerto sólido, gozado.

Sobre o James Carter, aconteceu o que temíamos. 
James Carter é - apenas - o mais impressionante saxofonista da história do Jazz, um verdadeiro monstro no instrumento, sem par. Mas porque pode - e ele pode literalmente tudo - ele envereda com frequência por caminhos que têm mais que ver com o exibicionismo técnico que a produção da música.
É verdade que o virtuosismo faz parte do Jazz: os músicos de Jazz são por definição excelentes músicos, e a exibição das qualidades percorreu algumas das sessões mais famosas da história. 
E se não consigo deixar de apreciar a virtuose absoluta do homem, há algo de circense na sua exibição que menoriza os concertos.  
Mas lá que arrepia, arrepia. 

O Theo Bleckman fez um concerto muito bonito. Bom, não é Jazz. E então?
O projecto era à partida de grande risco: tocar a música de Kate Bush. Lembram-se da voz da Kate Bush? - O Gonçalo (Falcão) chamou-lhe de miado. 
Poderemos dizer que se tratou de um concerto pop tocado por músicos de Jazz. A própria atitude dos músicos (e a figura) atirava para fora do Jazz.
Logo aos primeiros acordes aquilo soou-me a um psicadelismo Pink Floyd do tempo de Syd Barrett mesclado com o dramatismo de Robert Wyatt. Nada a dizer: estava perante o melhor dos mundos (musicais). Sem quaisquer veleidades de tocar Jazz, Theo Bleckman e a banda, recriaram a música de Bush, e eu diria que ficou bastante melhor. 
Enfim, a partir de certa altura a voz de Bleckman, e a interpretação, diminuíram no «experimentalismo» (ponho sempre aspas, porque a palavra experimentalismo me sugere a experiência como um fim, o que eu acho uma parvoíce) para evocar a música de Peter Hammill. que se sentia até no timbre e no dramatismo «épico» da voz.
Belíssimo de uma ponta a outra.
    
«Erro de casting» foi o mexicano Adrián Oropeza, que não tinha claramente lugar num festival com o prestígio do Guimarães Jazz. Posso compreender as razões, mas ainda assim, eu poderia citar de cabeça vinte ou trinta músicos nacionais com melhores qualificações que o baterista. Sem sequer a personalidade «étnica» que poderíamos imaginar como argumento, ele faria quando muito uma hora bem passada à frente de um copo de whisky ao balcão de um bar numa noite de chuva.
A não repetir.

Grande expectativa rodeava o concerto da «Big Band, Ensemble de Cordas e Coro da ESMAE».
Bom, o coro não veio, não sei se por bem.
A expectativa advinha em grande medida pela «aura» vanguardista que rodeava os músicos. Os dois israelitas-novaiorquinos eram-me completamente desconhecidos, mas Taylor Ho Bynum integrou os grupos de Anthony Braxton durante anos e Adam Lane tem passado por Portugal com regularidade (esta é a décima vez, ao que disse), com gravações irregulares na Clean Feed.
O concerto constou de vários temas, dirigidos pelos quatro, em separado, com um dos temas dirigido «aleatoriamente» por três em simultâneo.
O resultado foi diverso, estando os melhores momentos a cargo de Adam Lane. Creio que algum pretensiosismo vanguardista prejudicou o concerto, que teve ainda assim alguns bons momentos. 
O último concerto do festival esteve a cargo do «Projeto Guimarães Jazz / Porta Jazz», dirigido por Susana Santos Silva
Irregular também, a música da trompetista tem enveredado nos últimos tempos por um caminho que valoriza a dissonância e que claramente ainda não está consolidada. 
As imagens que foram projectadas ao longo do concerto eram de certa forma exemplares também de algum pretensiosismo do concerto: abstractas, desinteressantes, inúteis, apenas serviram para desviar a atenção da música.

As jams sessions são sempre obrigatórias, e quem vai ao Guimarães Jazz e não vai ao Convívio (com passagem pelo Martins para o prego e o fino da noite, mas isso já é facultativo, mesmo se aconselhável), não foi ao Guimarães Jazz. Digo eu, que sou um entusiasta.
As jam sessions são o local onde se cruzam os alunos com os «professores» dos workshops com os músicos que diariamente actuam no Vila Flor. Desde há uns anos divididos entre o Convívio e o Café Concerto, a minha preferência vai claramente para o Convívio, pela patine e pela onda.    
Numa das noites, mais calma, os alunos foram rodando, entre saxofonistas, trombonistas, guitarristas, pianistas e até um cantor, enquanto Reut Regev (trombone), Taylor Ho Bynum (trompete), e Igal Foni (bateria) - iam alternando, e apenas o hiperactivo Adam Lane (contrabaixo) se manteve toda a noite.Curiosamente, muito curiosamente, os temas tocados eram ... standards. 
(Oh, como eu gostava de ver os vanguardistas da nossa praça a tocar Charlie Parker ou Sonny Rollins!!! Mas isso é outra conversa.)
Na outra noite, depois de uma hora muito semelhante, apareceu ... James Carter, acompanhado do organista e do baterista.
Momento único, diria, Bynum, Regev e Adam Lane a tocar com James Carter!!!! Só possível mesmo em Guimarães.
Um pouco antes, o pianista (Gerard Gibbs) tinha protagonizado um momento parvo, ao chutar literalmente o jovem que estava ao piano, como se dissesse: «chega-te para lá, eu sou preto, eu é que sei tocar Jazz».
Infeliz.
Já James Carter soube tocar com todos, intrometendo-se, é certo, nos solos dos outros (mas faz parte das (des)regras das jams, não é?), mas aceitando ainda assim tocar no seu tempo, e tocando ao despique com um dos jovens (Christo?, aluno da ESMAE), à boa maneira dos saxophone battles. Jovem que se portou muito bem, diria, defendendo-se como pôde, com discernimento e engenho.
O baterista ainda substituiria Foni e todos rodaram, enquanto Adam Lane tocava, tocava, tocava, furiosamente ao longo das três horas a que assisti.
E enfim, a organização do Vila Flor lá arrancou Carter do Convívio para o avião, e a noite continuou. 
Memorável.
   

Seixal Jazz 2014


Com a melhor programação dos últimos anos, o Seixal Jazz procura reocupar o lugar cimeiro que já ocupou entre os festivais de Jazz nacionais. À programação, dividida, como vem ocorrendo, entre Paulo Gil e Pedro Costa, o Seixal Jazz acrescentou este ano dois concertos de programação nacional própria: o clássico trio de Mário Laginha e o Lokomotiv de Carlos Barretto acrescido do saxofone de Ricardo Toscano; dois concertos onde as expectativas seriam sempre elevadas.
De acordo com o novo modelo os concertos começam às 21.30 e têm dois sets.
Não assisti, por razões alheias à minha vontade, aos concertos de músicos portugueses.



Craig Taborn Trio



Sempre que revejo Craig Taborn relembro a primeira vez que o vi tocar, há muitos anos, em Cascais, integrado no grupo de James Carter.
Quão diferente era a música fulminante do pianista de Carter e a música que Taborn vem tocando, e mais ainda a que podemos ouvir nos dois recentes discos para a ECM, Avenging Angel (piano solo) e Chants (em trio).
A música que Craig Taborn tocou no Seixal revelou o engenho e a minúcia do joalheiro, na manipulação dos elementos que o formato trio admite, e diria mais, na relação temerária entre escrita e composição, entre o silêncio e as intrincadas harmonias com que ao longo de duas horas presenteou a plateia.
Música de grande exigência, Craig Taborn confirmou porque é um dos grandes pianistas da actualidade; não apenas do ponto de vista técnico, mas do ponto de vista conceptual, na luxúria das ideias e na modernidade que não transinge com experimentalismos.
Notáveis também, Thomas Morgan, o contrabaixista, gémeo no rigor e na inventiva, e JT Bates, que substituiu Gerald Cleaver, o bateria regular do trio, mas que se adaptou bastante bem ao colectivo.
Excelente, este arranque do Seixal Jazz.

Louis Sclavis Atlas Trio 



O concerto de Louis Sclavis foi uma desilusão. Não se percebe este Atlas Trio. Os discos (do Atlas) eram desinteressantes, mas eu tinha ainda assim alguma expectativa neste concerto, dado o gigante do saxofone que Sclavis é. O pianista e o guitarrista tiveram uma postura diletante e frívola e o próprio Sclavis, um saxofonista vulcânico esteve sempre desinspirado.


Ambrose Akinmusire Quintet



Akinmusire é um trompetista fabuloso; o controle que possui do instrumento está ao nível dos mais lendários músicos de Jazz. Mas ele é também um compositor bastante original, que entende as composições não apenas como argumentos, como é de certa forma a rotina no Jazz, mas como pequenas sinfonias, verdadeiras composições com princípio, meio e fim, mas também com diferentes instrumentações e referenciais.
Não era possível trazer para o palco do Seixal todo o The Imagined Savior is Far Easier to Paint editado já este ano, e que foi objecto da atenção no concerto; o disco contava com três cantores diferentes em três diferentes temas, mas também guitarra e um quarteto de cordas, oferecendo-lhe um cariz de «pop culta» a que o concerto do Seixal escapou.
O quinteto – que já rola na estrada há pelo menos dois anos – arrancou para um dos temas mais «populares» do CD de 2011, «My Name is Oscar» de When the Heart Energews Glistening, e creio que apenas terá tocado um outro tema - «Regret No More» - deste disco.
Outros temas foram «Rollcall for Those Absent», «As We Fight», «Marie Christie», «The Beauty of Dissolving Portraits» e outros de 2014.
Os músicos - um quinteto de músicos superlativos - raramente se evidenciam, com excepção talvez para ele mesmo Ambrose Akinmusire e o saxofone, submetidos a composições muito severas na forma; em prejuízo, por vezes, da emoção. Mas entre a força de «My Name is Oscar», um libelo irado ao racismo, e a poesia de «Marie Christie», há um mundo.
O público rendeu-se à beleza e à exigência da música, obrigando os músicos a regressar para dois encores.

O Seixal Jazz está de volta!

10 de Novembro de 2014.