A camisola do Angra Jazz
2014 continha uma frase célebre do pianista Bill Evans, provavelmente uma das
mais conseguidas definições de Jazz de sempre: Jazz is not a what; it’s a how. E diríamos que a subtileza quase
poderia servir de bitola para definir a maior ou menor proximidade dos
concertos que passaram em Angra ao Jazz. Como se toca diz tudo, ou quase tudo,
do engenho e da criatividade dos músicos, da sua capacidade de expressão
jazzística.
Ainda antes do início do
festival, e como evento paralelo, foi inaugurada no foyer do Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo uma
exposição fotográfica de Margarida Quinteiro,
«Duos», composta de fotografias do Angra Jazz 2013 e de outras, que a autora
emparelhou de forma muito pessoal. Ainda que – do meu ponto de vista - algo
forçados, os agrupamentos, a qualidade das fotos e o (certain) regard de Margarida Quinteiro fê-las valer a pena.
Orquestra Angra Jazz
Denominei um dia à Orquestra Angra Jazz de «orquestra improvável». A insularidade e a irregularidade competiam para a sua improbabilidade, mas a verdade é que ela aí está como uma pérola no oceano. Creio que todos serão unânimes que a sua apresentação este ano ultrapassou todas as melhores expectativas. À desorientação de há três anos (que me levou na altura a criticar fortemente a direcção), sucedeu-se um esforço de refrescamento e principalmente muito trabalho, e os resultados foram notórios. Alguns erros do passado vêm sendo corrigidos, muito especial na «formação» de improvisadores. Quase todos os membros da orquestra foram levados a improvisar, destacando-se Rui Melo no saxofone e Paulo Borges, mas também Antonella Barletta no piano.
Do lado das debilidades
estiveram algum desequilíbrio na orquestra, com alguns membros muito jovens a
procurar compensar a rigidez com entusiasmo, e a ausência de trombones (apenas
um), (mal) substituídos por duas trompas, instrumentos bastante menos
dinâmicos. Igualmente irregular, mas ainda assim a crescer, com bons momentos,
esteve a secção rítmica.
Convém reconhecer que o
êxito da sua apresentação deste ano se deverá em grande medida à escolha do
repertório, onde o swing esteve em
evidência. A orquestra tocou Count Basie (mais Basie, pf), DukeEllington, Benny
Goodman, Chick Webb, entre outros; um repertório da responsabilidade de Claus
Nymark a quem esteve este ano acometida a direcção em exclusivo. O swing contagiou a plateia com
facilidade, no que terá sido porventura a melhor prestação da orquestra de
sempre.
Um projecto que vale a
pena acarinhar!
Joey DeFrancesco
A noite do primeiro dia do festival completou-se com outra surpresa. Já conhecíamos Joey DeFrancesco dos discos, mas a verdade é que as gravações não lhe fazem justiça: ele literalmente incendiou a plateia com o swing arrebatador do Hammond XB3. Instrumento de culto, o B3 ganha nas mãos do virtuoso DeFrancesco não apenas velocidade e energia, mas também blues e emoção. Com uma secção rítmica minimalista, mas eficaz – um guitarrista alternando entre Grant Green e John McLaughlin e um baterista (conhecido por habitar outras paragens mais abstractas) versátil e impetuoso-, o voluptuoso organista não deixou os créditos em mãos alheias. O climax aconteceu já no final quando, ao trompete, evocou o Miles Davis eléctrico e logo de seguida Chet Baker num tocante “TheTouch of Your Lips” cantado.
Barry Harris
Para abrir a segunda noite, o Angra Jazz – e em jeito de celebração do centésimo concerto do Angra Jazz – reservou lugar para um dos grandes pianistas da história do Jazz, Barry Harris; um veterano que curiosamente nunca tinha vindo a Portugal. Como revelou, Barry Harris esteve programado para vir a Portugal há 21 anos, tendo sido contrariado por um avc.
Do alto dos seus 85 anos de idade, Barry Harris trouxe uma
história de vida de quem tocou com todos os grandes nomes do Jazz, entre
Cannonball Adderley, Miles Davis, Dexter Gordon, Charlie Parker ou LesterYoung,
com um estilo pessoal que tem raízes óbvias no bop, mas a que acrescenta
lirismo e serenidade.
A actuação de BarryHarris teve momentos pitorescos, de
rabugice pelo som do contrabaixo, e de humor e pura empatia com o público, com
a autoridade que a idade e a veterania lhe autorizam.
Gary Smulyan
O saxofone barítono é um instrumento pouco comum na
liderança, embora existam alguns notáveis exemplos como Gerry Mulligan ou Pepper
Adams. Smulyan é um discípulo confesso de Adams, um instrumentista com um som
muito duro. Mas mais dúctil que duro, Smulyan procurou aproximar-se do público,
logo no arranque do concerto com “Sunny”, célebre composição popularizada por Boney M. ou em “A Little Help
From My Friends”.
A
piscadela de olho aos jazzómanos mais
empedernidos foi feita em “HeavenlyHours”, cruzando dois clássicos, “Seven Steps
to Heaven”e “My Shining Hour”, rematando com um blues bem humorado, “Cracas e Lapas”, inspirado no fausto almoço.
Ricardo Toscano
O último dia do festival é sempre o dia da segunda representação nacional e do Jazz vocal, e assim se cumpriu. A noite começou com o grupo de Ricardo Toscano, um quarteto onde o elemento mais velho tem apenas 23 anos.
Entusiasmo, humildade e honestidade fizeram o que para
muitos terá mesmo sido o melhor concerto do festival. Um pouco a contragosto do
que faz a generalidade dos músicos nacionais, o repertório do quarteto foi
inteiramente retirado do espólio dos nomes cimeiros do jazz: John Coltrane, Billy
Eckstine, Herbie Hancock, Joe Henderson, Duke Ellington, Ornette Coleman; numa
demonstração da eternidade do Jazz clássico.
O saxofone de Toscano revela uma sabedoria e um ímpeto como
há muito não se via entre nós; mas em abono da verdade se diga que todo o grupo
revelou uma arte e um conhecimento da tradição bem acima do comum, com uma
coesão e energia invulgares, e tenho dificuldade em evidenciar um músico. O
público aplaudiu com entusiasmo o grupo dos jovens leões.
Uma grande lição de Jazz que muitos músicos deveriam
atender.
René Marie
Depois do extraordinário concerto dos jovens músicos, temeu-se pelo pior para a segunda metade da noite. Mas as dúvidas foram afastadas desde o primeiro momento da actuação de René Marie.
Uma das peculiaridades da história de René Marie é a
contestação da subalternidade que
está associada à dupla condição de mulher e negra, e o primeiro tema da noite,
um original da cantora, reflectiu esse tema. Mas outras canções procuraram
aproximar o público de forma engenhosa, em interessantes covers de “C’est si bon”, “My Heart Belongs to Daddy”, ou um
“Suzanne” (Leonard Cohen) em forma de “Bolero” de Ravel. René Marie canta blues, por vezes sugere ora Nina Simone
ora DeeDee, usa o falsete ou o scat
com grande agilidade, insufla alma em cançonetas, provoca ou põe o público a
cantar.
René Marie possui uma voz grave cheia de swing e técnica, mas principalmente ela
é um genuíno animal de palco e a sua performance
agarrou o público com eficácia. Trio de suporte eficaz, com destaque para um
pianista engenhoso.
Um grande final para um dos melhores festivais de Jazz
nacionais.